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terça-feira, 28 de outubro de 2008

De tarde

A gente não precisa muito para pensar em explodir os miolos. Um tiro no meio da boca. Eu tento não reclamar, as coisas sempre podem ir para pior. Mas é bom não ter porte, não ter nem dinheiro para comprar alguma arma no comércio ilegal. As paredes amarelas com uma textura de mau-gosto estão suando uma gordura de cheiro forte. Meus peidos escorrem líquidos por todas as arestas da casa. Só tenho comido feijão e ovos. Ovos fritos, estrelados... O cheiro me impregna, sinto vergonha do transtorno que causo às minhas narinas. Vou até a varanda e olho o céu roxo da cidade. O apartamento é uma porta para um vazio mobiliado. Um nada cheio de sentimento. Eu penso num cigarro, mesmo nunca tendo fumado. Na rua alguns homens jogam cartas na carroceria de um caminhão. Gritos e coçadas de êxtase nas viradas dos naipes. Eu invejo seu ócio, sua abertura das portas. Uma pomba cata algo no meio fio. O copo de água vazio ainda está suado pelo gelo. Não lembro quando me tranquei aqui. Onde joguei o código de acesso. Quando foi que deixei minha pele amarelar e alguns pelos esparsos crescerem no meu peito, ao redor dos meus mamilos. Esfrego a mão na barba rala. Penso na noite de ontem, no amanhecer de amanhã e sinto que o tempo passa lento. Uma velhice consensual toma conta das dobras dos meus dedos. E eu me sinto no meio do existir. Volto para o quarto e ela não está lá. Nem na cama, nem no velho sofá de couro falso, que faz a gente suar logo que senta. O computador parece um aspirador de pó. Vou até o corredor e subo num banco. Na altura dos meus olhos uma prateleira que guarda algumas caixas, aproveitamento de espaço, de pouco espaço. Pego uma caixa bronzeada pela ferrugem. Sento na cama e tiro a tampa estampada em flores lilases, recorte cobertos por contact. Dentro, um plástico bolha protege algumas fotos. Olho para o plástico e sua transparência fosca me revela sorrisos de aniversário. Tampo a caixa e deixo meu corpo dobrar e cair na cama. O colchão velho é tão duro quanto minha carne cansada. Olho os pontos pretos no teto, o mofo já come a pintura branca e o forro de madeira fina. Eu sei que ela não aparece faz muito tempo. Mas sinto o seu perfume no travesseiro. Um perfume amargo, com tons de azul ladrilhado. Abro a caixa sem olhar e tiro o saco com os papéis e fotos. Pego uma por sorteio e levanto na direção do meu nariz. Uma menina brinca com um cão. Uns dois anos. Tínhamos acabado de comprar a casa. O cão nem tinha dentes ainda. Penso no quintal de cimento, na fachada com tinta fresca, no portão que só abria por dentro. Pego outra foto e ela está lá. Sorrindo ao lado do guarda roupa com a longa barriga habitada. Um sorriso de canto, com alguns dentes aparecendo estúpidos. A barriga quase explodindo. Na próxima eu estou só. Sentado na cadeira da cozinha deste apartamento, levantando a câmera na altura da cabeça, como um vigia. Fazendo cara de sério, de quem não se importa com o vazio das paredes e o cheiro de podre dos meus alimentos. Levantando a câmera como um cano, na altura da cabeça. Na direção da boca. Desnudando os miolos.

9 comentários:

Kizzy Ysatis disse...

começo escatológico, final original, quase hermético, deixa possibilidades em ambiguidades para o deleite da imaginação.

mas o começo foi escatológico, tem hora que vc passa dos limites da nojeira, tá assim desde Maternidade, mas tudo bem, a frase "sinto vergonha do transtorno que causo às minhas narinas" perdoa todo o resto

parabéns pelo ótimo texto

Tiago Bode disse...

nada melhor do que ler algo assim, fresquinho...
vejo minhas cricas em cada uma dessa linhas; adoro o escatológico exatamente pela carga humanística que há nele. penso: que seria de nós sem a verdade de nossos peidos?
curto a passagem "Eu penso num cigarro, mesmo nunca tendo fumado", lembra a estética barata que levou a fumar e a pungente necessidade que mantém fumando, escorado na fumaça, tentando achar na nicotina razões para entender minhas necesidades, minha profissão, os assaltos a menos de cem metros de casa e incapacidade de seguir mentindo, aceitando essa incoveniências...
como sempre, de fudê!

Tiago Bode disse...

perdão pelo erros ortográficos, são duas da matina...

Anônimo disse...

gostei. e muito. há algo de urgente, de enxuto e de grosseiro que é pra lá de estimulante, como tapas na cara de quem lê, antecipando o tiro posterior à compra da arma fria; antecipando o fim... do delírio, do personagem, do texto.

Leandro Leite Leocadio disse...

Gostei do texto. Forte, com fluidez. Fluido até demais. (Risos.) Parabéns pelo texto, Leocadio.

JULIO CARVALHO disse...

ai ai ai....vc e seus excessos...nem falo nada....saudades...doido...voltei a produzir pouco mas tá lá...dá uma olhada e mande bala nos meus miolos tbm....
http://karvelbrazil.spaces.live.com
&
http://deletrando.blogspot.com

Claudio Brites disse...

Kizzy

salve a escatologia! (melhor que o hermetismo)

Tiago

pois é. quero meu celular de volta!

Cariello

sempre direto no peito! no meio dele.

Leandro

Um dia quero que essa fluidez escorra pelos monitores de quem ler... he he he

Julio

Uma bala? mas são dois blogs!

JULIO CARVALHO disse...

então.....mande duas balas pq seu link tá no blog principal http://karvelbrazil.spaces.live.com
o DELETRANDO é só o pessoal da escola....e eu com os advérbios e vc com os excessos...hahaha...saudades

Denize Muller disse...

Às vezes, só às vezes eu me perco. Não é no texto, mas em suas possibilidades. Uma arma, um peido, uma ausencia.De cães eu conheço. Feito pão saindo do forno sinto o cheiro quente da voz.
Bjs te amo