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sábado, 6 de junho de 2009

e tem mais

Hoje senti saudade. De algumas caras que na minha memória já não tem a cor dos olhos definidas. De alguns cheiros que perderam o fixador. Senti falta de alguns empregos que odiava. De coisas que “não agüentava mais”. Pensei saudade de vozes infantis. De dias tediosos. Saudade da solidão. Do medo de nunca ter ninguém. Saudade da companhia de sempre. Senti saudade da minha mãe e meu pai comendo pipoca e da minha irmã com os pés no meu colo, enquanto na televisão passava um filme alugado em VHS dublado. Senti saudade da primeira namorada. Senti saudade do primeiro fora. Senti saudade do cão que morreu com o bicho do porco na cabeça. Senti saudade de quando comia bolo de chocolate escondido, por conta da alergia ao leite (eu ainda não conhecia o leite de soja). Senti saudade do frio da festa junina. Do medo de não beijar ninguém. De não beijar ninguém. De beijar alguém. Do frêmito do toque no lábio frio e desconhecido. De ser o padre na quadrilha e querer ficar com a noiva. Saudade do grupo de teatro. Da verdade que era tão óbvia. Saudade dos jogos de futebol de salão. Do medo de nunca emagrecer. Senti saudade do primeiro ano na faculdade. Da não possibilidade de sobreviver aos infinitos trabalhos. De descobrir que tudo não era tão sério assim. Senti saudade do boteco. Do primeiro gole de cerveja. De descobrir o que era swing. E swing. Das conversas cheias de palavrões, algo raro nos meus ouvidos católicos e pouco caóticos. Da garota de cabelos encaracolados e dentes tortos. Da loira mais velha. Da prova de economia. Senti saudade do emprego no banco. Dos amigos do banco. Do medo diário de não bater meta. Da cirurgia a laser para não usar mais óculos. Dos óculos. Do passeio a Peruíbe. Saudade de quando descobriram que eu tinha sim namorada e sim ela era uma loira gata e sim era mais velha. De descobrir que ela era louca e de que eu queria ser padre. Do fim. Do começo. De saber que não queria ser padre. Da roupa preta e das unhas pintadas de preto. Do travesti de cartola. Saudade de descobrir a Enya. A Lorena. O Links e o sister of mercy. New order. Saudade das sete estrelas cadentes. Do acampamento improvisado e eu de terno. Do dia das mães. De começar a conversar com meu pai, depois de uma vida toda sem conhecer sua voz. Saudade do meu aniversário de 20 anos. Das pessoas que eu nem conhecia. Da mulher de olhos azuis e eternos. Da pequena de olhos verdes de graça. Saudade da faculdade de Letras. Da descoberta da literatura como parte da minha alma ainda sem espírito. Da sinceridade dos professores. Da falsidade dos amigos. Saudade do fim do namoro de muito tempo com os olhos verdes, sem graça. Saudade de cotidizanizar. Saudade de outro grupo de teatro. Saudade do começo do namoro. Do primeiro amor maduro. Saudade de brincar de editor. Saudade de fingir escritor. Saudade da saída de casa. Do começo de casamento. Do apartamento e da Liberdade. Do medo de não dar certo. Do amor sem fronteiras. Saudade da vida à dois. À três. Das risadas com mais. Saudade das oficinas de escrita. Do medo da escrita. Da possibilidade de ser pai. Da certeza “vou ser pai”. Da gravidez. Do parto. Dos primeiros meses. Do primeiro banho. Da primeira febre. Do apartamento no quinto andar. De brincar que o Brás era Paris. Da ideia de publicar os outros. De achar que ia me divertir. Dos projetos quando eram só projetos. Das bocas quando ainda não estavam prontas. Das brigas. Dos mils reais. De querer ser escritor. De escrever. Das conversas de segunda. Da foice. De ontem. De um tempão que fiquei sem chorar.

Saudade do momento que comecei a escrever esse texto e ainda não tinha consciência de quanta coisa que há pra sentir saudade.

10 comentários:

Marcelo Maluf disse...

LINDO.

Bruno Cobbi disse...

Tava com saudades de ti assim. Artista.

É uma honra fazer minhas pegadas ao lado das suas, Zed.

Kizzy Ysatis disse...

travesti de cartola, sr. Zed? hahahhahahahahahha Adorei!
teu texto está num todo fascinante.

Laura Fuentes disse...

Melancólico, lírico e sincero. De emocionar.

F. disse...

Estimado, linda vida e lindo texto. abs

Claudio Brites disse...

saudade de vocês reunidos em torno da mesma mesa.

gui-de-bauru disse...

Que excelente ritmo. Vívido.
Mas faço uma pergunta: é possível sentir saudade do que nunca existiu? Ou isso que supostamente é saudade é uma melancolia confusa? Eu, por minha vez, tenho saudades do avô que nunca tive.

Mas, sempre avante.

Um abraço.

Tiago Bode disse...

meus olhos arderam de tantas saudades que senti junto de você, e de tantas outras que ainda sentiremos...

Ester Andrade disse...

Saudades do colchão no chão... saudade das noites no Itaim...

Claudio Brites disse...

Gui, eu morro de saudade do acampamento de férias que nunca frequentei e da babá gostosa que nunca comi.

bode, juntos sempre.

amor, o colchão ainda é o mesmo. saudade da caramboleta quando era do marcelo.